sábado, 17 de maio de 2014


A Adolescência - experiências diferenciadas.


A Maria (nome fictício) nasceu em 1941, numa aldeia transmontana.
O Pedro (nome fictício) nasceu em 2002, na cidade de Lisboa.
Independentemente da época, o factor geográfico é por si só, uma diferenciação significativa a ter em conta,  na construção do ser humano a nível socioeconómico, cultural, político, religioso e de condições de vida, encontrados nos diferentes contextos: rural e, citadino. Há, no entanto muitos outros factores e, aspectos a ter em conta.
A Maria, irmã mais velha de três irmãos, assumia responsabilidades, atribuídas pelos pais que em muito ultrapassavam, as ténues leis de protecção à criança, geradas pela Sociedade das Nações em 1924, e que mais não eram que cinco artigos  sem qualquer carácter vinculativo. Quanto à personalidade jurídica tanto a declaração de 1924 como a de 1959, demonstram uma certa inconsistência jurídica, ao deixar os princípios jurídicos à consciência de cada Estado membro.
Em defesa das crianças, criaram-se nessa época, algumas organizações não-governamentais que conjuntamente com a OIT, conseguiram aprovação em 1921, de indícios importantes de protecção à infância, como a fixação de idade mínima para trabalho nas fábricas e, no trabalho marítimo assim como, também sobre o trabalho fabril nocturno. A escolaridade mínima obrigatória, estava estabelecida em quatro anos. A referência ao trabalho infantil, era apenas explicita quanto ao trabalho fabril.
 Para Maria, estes princípios básicos, foram escamoteados e nem sempre cumpridos. O poder paternal era exercido com base na obediência total (ideologia inculcada por tradição religiosa) e, a correspondente penalização pela falta desta, com castigos que incluíam não só a violência verbal como também física.
Entrou para a escola aos 7 anos, mas não largou o trabalho do campo, a que estava habituada, por ser a filha mais velha (a irmã que se lhe seguia era quatro anos mais nova), acompanhava os pais no trabalho da terra. A mãe ficava em casa a cuidar do filho mais novo. Maria tanto cuidava da mãe combalida, pelo parto, como cuidava da irmã mais nova, cuidava da casa, ajudava o pai nas tarefas agrícolas e, por vezes às escondidas da família, ia à escola, porque gostava muito de  aprender e, conviver com os seus pares. Mas foi descoberta e castigada. Não conseguiu concluir o terceiro ano. Os pais cuidavam para que o abandono escolar, não ecoasse fora da terra; sabiam da obrigatoriedade imposta pelo Estado, à frequência obrigatória. A professora, visitou várias vezes a família, no sentido de liberar algum tempo da Maria, para poder frequentar a escola, mas foi em vão. Acabou por desistir num acto infeliz de desresponsabilização e, ao mesmo tempo de sensibilidade às necessidades familiares.
Aos treze anos, Maria foi entregue a uma família abastada da aldeia, que veio viver para a cidade; fosse outro o contexto, poderíamos encontrar aqui, uma aprendizagem valorosa de novas experiências e socialização, contudo em contrapartida, Maria teve de  lhes prestar serviços domésticos, por tempo indeterminado, ficando privada do ambiente familiar e, dos seus amigos; devo salientar que os serviços de que estava incumbida eram todas as tarefas caseiras necessárias ao bom funcionamento doméstico, de uma família de 6 pessoas: lavar a roupa, passar a ferro, cozinhar todas as refeições, limpar toda a casa com um  soalho imenso para raspar e envernizar, costurar as roupas dos “patrões”, fazer compras, etc. Levantava-se às 6.30 da manhã, para tratar dos pequenos-almoços, só se deitava quando todos já o tivessem feito. Não era remunerada. Por outro lado, não trazia encargos aos pais! E destes, ela não sabia o que eram cuidados e afecto. Comunicavam-se por carta. A sua primeira retribuição económica simbólica, chegou aos 17 anos, pela exigência dos pais, e a quem era entregue por inteiro (a pequena quantia em dinheiro), mensalmente.
Maria,  nunca chegou a saber que na sua vida existiu uma fase denominada por infância: não lhe deram esse direito. Esta “não infância”, castrou-lhe a adolescência; obteve o estatuto de adulta, aos vinte e um anos, a quando do matrimónio e, também a idade estabelecida institucionalmente, para a maioridade.
Por isso pôde casar, apesar da oposição dos pais. A Declaração de 1959, continuava sem carácter vinculativo e, omissa em muitos aspectos se bem que com algumas diferenças significativas no esclarecimento, dos direitos mais subjectivos. Contudo para Maria era já tarde demais!

É já sob a universalidade e, a natureza vinculativa da Convenção dos Direitos da Criança de 1989, e da Carta Europeia dos Direitos da Criança, que o Pedro nasce. Traz consigo uma identidade e personalidade jurídica, vinculada e institucionalizada, que lhe atribuem direitos, cuja salvaguarda competem à família e ao Estado e, direitos subjectivos que ele mesmo pode exercer sobre si. O Pedro é uma criança informada, liberta  de qualquer tipo de pressão, frequentou a pré-escola e, frequenta o primeiro ano da escolaridade obrigatória.
A infância é delimitada por vários aspectos e, condições sócio históricas particulares, que nos impedem de poder comparar alguns aspectos nas infâncias de Maria e Pedro, como o  facto de pertencerem a espaços geográficos distintos, assim como os factores socioeconómicos envolvidos no contexto individual de cada um. Talvez o aspecto cultural seja o mais legítimo de salientar nesta diferenciação: a expansão da instituição escolar, foi a que de entre todos os factores, aquele que de facto atribuiu maior visibilidade e valorização, aos Direitos da Criança, hoje consagrados. O direito à educação, transporta consigo a importância dos valores a transmitir: desenvolvimento de capacidades e, aprendizagens a dinamizar, promoção de autonomia e, aquisição de saberes que dificilmente escapam à informatização global,  tecnológica e de acesso facilitado à grande maioria das famílias e, das suas crianças.
O Pedro sabe que não tem idade para trabalhar, mas a Maria desconhecia este facto, ocultado pela tradição canónica, do dever de obediência total aos pais; os pais do Pedro se encontrarem dificuldades na educação dos filhos, sabem que podem recorrer ao apoio do estado, delegado na segurança social, institucionalizada num Estado democrático; o Pedro usufrui dos três direitos básicos das crianças: Provisão, saúde, bem-estar, segurança social; Protecção, contra abusos, maus tratos, exploração, discriminação seja em que aspecto for materializado; Participação, na construção do seu conhecimento e, da vida social dos contextos que frequenta no seu quotidiano. Sente-se valorizado como pessoa. Sente que a sua opinião conta. Sente que o pouco que ainda é capaz de fazer, dá uma significativa contribuição, tanto no contexto familiar (como arrumar o seu quarto, por exemplo), como no contexto escolar quando participa em actividades extracurriculares ou, em contexto social quando brinca com os seus pares, numa dinâmica de  socialização que promove a cidadania, a construção da perspectiva do “outro” e, da sua aceitação como um igual e, espírito cooperativo.
Uma das contradições actuais dos Direitos das Crianças é visível, entre outros, neste facto:
A Maria construiu uma maturidade precocemente, que lhe poderia ter garantido a sua própria subsistência, não fosse o facto da exploração do seu trabalho infantil.
O Pedro, irá construindo progressivamente a sua educação, a sua autonomia e, alcançar a sua maturidade, muito mais tarde, ficando dependente economicamente dos pais, até ter acesso ao mercado de trabalho.


Maria Isabel Almeida, 2009 - Universidade Aberta (Trabalho na disciplina de "A Criança na Sociedade Contemporânea").



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