sábado, 17 de maio de 2014



Quotidiano infantil na sociedade contemporânea. Breve ensaio.

  Introdução
O propósito deste texto, versa uma observação breve  sobre os direitos das crianças aos tempos livres, jogos/brincadeiras, à saúde e bem-estar e, ao papel da família na educação para o consumo. Leitura relevante para todos os actores e agentes educativos, mas também para o público em geral, que pretenda adquirir conhecimentos nesta matéria.

   Contextualização
Propósito
Breve ensaio sobre o quotidiano de uma criança de 9 anos, que frequenta o 4º ano, do 1º ciclo do ensino básico. Ao acompanhar  por algum tempo o “Diogo” no seu quotidiano, pretende-se identificar e analisar quanto ao modo de ocupação dos seus tempos quotidianos, em especial dos seus tempos livres; conferir o cumprimento do  seu direito à saúde; e tentar  reconhecer onde e, como o papel da família,  interferem na sua relação com a sociedade de consumo.
O que vai por aqui?
Aqui, vai o quotidiano do Diogo!
Acorda bem cedo, não porque a escola fique longe, pois basta-lhe atravessar a rua; já os pais trabalham fora do concelho e, têm de deixar o filho  na escola muito antes do que seria necessário. Mas o Diogo não reclama, “rabuja” e, toca a andar! Há que esclarecer: o Diogo não gosta da escola. Nunca gostou. Mas aceita o sacrifício para fazer os pais felizes. Afinal, do que ele gosta mesmo é da hora de recreio,....não se cansa de brincar! Poderia noutras circunstâncias, evidenciar um estado de perfeita saúde, boa integração e, socialização se contudo na hora de ir para a escola, ou nos momentos em que tem de fazer os “trabalhos de casa”, o Diogo não se tornasse num menino triste, de ar cansado, apático e, desmotivado com tudo.
Após as actividades curriculares o Diogo permanece na escola e, frequenta as actividades do ATL. Tem estudo, informática, inglês, artes marciais, ginástica, hip-hop e as “conversas” com a psicóloga.
Quando acabam as actividades por volta das 17.30 horas, ainda terá de permanecer na escola até perto das 19 horas, quando a mãe o vai buscar, depois do trabalho.
Esses momentos sem actividades ocupa-os a “brincar”. Pena é que os seus colegas vão saindo, uns após os outros e, já poucos ficam até tão tarde como ele! Mas ainda assim, são momentos muito divertidos.
As actividades semanais do Diogo não terminam aqui, ao sábado tem natação de manhã (porque os pais querem que ele se desenvolva fisicamente, visto ser uma criança franzina), e à tarde vai à catequese.
Ao domingo fica por casa, vê televisão, vai às compras com os pais e, vai um pouco ao computador mas só depois de fazer os trabalhos de casa (TPC’s). Sim, porque “amanhã” é de novo segunda-feira...

3.    Argumentação
O estilo de vida do Diogo e, da sua família denota a tendência já antes referida por Neto (2001), “alterações na estrutura familiar e, laboral das sociedades industrializadas ou pós-industrializadas”; também  na opinião do autor “uma das vertentes que mais se prende com a vida quotidiana das crianças é a que respeita aos tempos livres”.
A questão é que neste caso, como no da maioria das crianças, os tempos livres focalizam-se na reprodução de actividades  pro-curriculares, versando temas e métodos idênticos aos do ensino curricular. Na verdade o que se propõe actualmente nas actividades de ATL é pura e simplesmente, a ocupação exaustiva das crianças, com vista ao valorizar das instituições, pelos pais, enfatizando a quantidade de actividades disponíveis, que possam parecer úteis para o futuro dos seus filhos, ao invés de se procurarem em proteger/satisfazer as crianças, e atribuir-lhes o direito, já consagrado, à brincadeira e aos tempos livres. Os pais por falta de interesse,  desconhecimento ou simplesmente comodismo, cedem à sedução das múltiplas actividades, pensando nelas como um substituto da família, que a sociedade actual resgatou às crianças, em nome duma produtividade  maior e, duma competitividade  global que se traduz, regra geral, numa maior qualidade de vida   (estabilidade financeira).
Mas que tipo de “qualidade” de vida é esta, que toma como reféns as crianças? O que faz com que muitas destas crianças, desprezem a escola, em vez de a desejarem?  Porquê a extensão desta, nas  ATL?
E, se as actividades fossem realmente de brincadeira, poderia a escola ser favorecida, na sua apreciação pelas crianças?
As famílias precisam de facto de alternativas adequadas e, adaptadas para as suas crianças. “ Os condicionalismos sociais, provocam um acentuado vazio do tempo familiar”, cujo quadro de constrangimentos recai sobre todo o percurso de vida das crianças. O Diogo sente-se revoltado porque não gosta do que faz todos os dias. Frequenta há muito apoio psicológico, porque se sente desmotivado, triste e possui um cepticismo, que não é comum em crianças da mesma faixa etária. Nunca acreditou no Pai Natal!
Porque sempre que lhe pedia “coisas” nunca lhas deu. E o que pedia o Diogo?!...que não fosse para a escola,... Queria ficar em casa a brincar,... queria brinquedos que nunca chegaram a vir,....não queria falar com a psicóloga,... Mas teve de aceitar a realidade, (contudo confidenciou-me que lhe mentia, só falava e respondia as “coisas” que ele já sabe que ela gosta de ouvir!!!)
A “colonização do tempo” de (Giddens, 1994) é a do Diogo; é visível e, provavelmente preocupante ao ponto de pôr a sua saúde em causa. Mas o Diogo não é uma criança feliz, logo não pode ser saudável. Os dados sobre saúde infantil em Portugal, são grandemente baseados na estrutura física, funcionamento orgânico e, em problemas motricionais; faz-se também referência às deficiências ligeiras, graves e muito graves, a vários níveis, mas em nenhum ponto, se observa a felicidade das crianças, como factor essencial e, de interesse e, influência directa na saúde emocional e, psicológica destas. O Diogo não tem deficiências, tem desejos e sonhos tão simples como por exemplo, jogar à bola, - “nem me importava tanto de ir à escola, se pudesse jogar num clube gostei de aprender a nadar, mas agora que já sei, não gosto de lá andar” –  (palavras do Diogo) - como estes muitos outros comentários, o Diogo vai desabafando no dia-a-dia, na esperança ínfima de obter o que deseja. De tudo o que mais gosta é de ver televisão, ah, sim também de ir ao computador  jogar um bocadinho, - “mas é sempre tão pouco”!
Os pais levam-no às compras, por vezes o Diogo pede um “kinder”, mas nem gosta de chocolate, é só pelo brinquedo que vem no ovo. A educação do Diogo para o consumo foi sempre muito regrada e, feita numa interacção directa com os pais, no modo como servem de modelo e, na compreensão desde cedo, do valor do dinheiro, atribuindo ao Diogo, por exemplo, a responsabilidade de retirar da sua mesada o dinheiro necessário, para pagar os óculos do colega, que partiu sem querer, numa das brincadeiras de grupo, no tempo  de recreio. Esta aprendizagem directa e, contínua é-lhe familiar e fácil de perceber. Aprende a fazer, fazendo com a família no quotidiano, sem pressões ou imposições, apenas observando e, participando com responsabilidade.
Corroborando  a teoria de Piaget, O Diogo desenvolveu, enquanto consumidor, uma socialização por etapas do desenvolvimento cognitivo. Uma interacção aberta entre os pais e a criança, teve muito provavelmente muita importância na primeira infância do Diogo, que pode complementar agora, observando os comportamentos  habituais de consumo, dos pais.

Considerações finais.       Especulações e alternativas.
A brincadeira é um acto espontâneo ao ser humano, especialmente na infância, fase em que é indispensável ao desenvolvimento equilibrado das crianças. Mas para brincarem as crianças precisam de Tempo Livre, sem compromissos regrados e, enquadrados ou subjugados a um tema ou finalidade pré-definida e, padronizada.
Tempo Livre é um direito institucionalmente reconhecido e, explícito no art.31 da Convenção dos Direitos das crianças: é um tempo disponível à criação, à brincadeira/jogo livre entre pares ou, puramente de ócio, como descansar, ver um filme de que se gosta, ler um livro ou, apenas não fazer nada. Contudo no caso do Diogo, assim como muitos outras crianças, este direito está-lhes vedado, pela necessidade  globalizante de capacitar os indivíduos para enfrentarem o futuro, “armadilhados” contra o “risco” e a “incerteza”, que Anthony Giddens (1994), classificou como marcos característicos  da sociedade contemporânea e, para os quais há que estar preparado.
Mas algo se passa de muito complexo, pois não conseguimos colmatar um problema sem criar outro ainda mais grave,  podemos pôr várias questões: onde fica o direito à escolha livre da criança? E o seu direito à saúde emocional, e por consequência à saúde física e psicológica?
Não é já atribuída à criança um tempo de trabalho, suficiente, comtemplando as horas de actividades de aprendizagem? (Perrenoud, 1995).
O Diogo tem para além do seu “trabalho” principal, outras actividades de “part-time”, igualmente comprimidas no tempo, regradas  nos comportamentos e atitudes,  geradoras de compromisso e, promotoras de mal-estar  permanente no seu quotidiano: a natação e a catequese (este é um aspecto que também nos poderia levar a questões, como endoutrinação ou coacção religiosa das crianças, mas que por agora fica apenas como um aspecto para reflectir).
O direito à escolha deveria favorecer e criar obrigatoriedade  às instituições, em alargar o leque de ofertas, a actividades  sem ligação a conteúdos curriculares. O porquê de nas ATL não existir actividades como  bordados,  skate ou  grafiti?
Poderemos logo à partida chegar à resposta: por falta de profissionais com formação específica, espaços adequados, materiais necessários às actividades e.....entendimento humano, abertura de mentalidade, para que pais e, educadores aceitem uma actividade sem preconceitos discriminatórios e, inibidores da liberdade de escolha das crianças.
Sendo a família a primeira e principal responsável pela educação das crianças, não deveriam elas adoptar uma consciencialização responsável, demonstrativa da sua própria autonomia e, poder de decisão avaliando e equilibrando no quotidiano da família e das crianças, os diversos “Tempos” atribuídos aos vários contextos de vida, dos seus filhos? Não serão também as empresas responsáveis, por uma contribuição social numa atitude cívica, de interajuda com os  pais, no encontrar de soluções equilibradas?  Penso que começar por aqui,  é já uma decisão de poder dos pais no Direito à Protecção, Provisão e Participação dos seus filhos, na sociedade contemporânea.

4.    Conclusões.
O Diogo passa mais tempo na escola do que com os pais, de certa forma, na sociedade actual  invertem-se os papéis, dos interventores maioritários na educação das crianças, até agora considerados pela maioria das teorias. Mas não devemos esquecer que, (e citando Rousseau), “a educação deve centrar-se na criança e nos seus interesses e, não no adulto e no mundo adulto”- é então mais provavelmente, na escola que as eventuais dificuldades se poderão evidenciar em cada criança: perturbações da aprendizagem, da fala, da socialização, perturbações de audição, da visão, ou de ordem psicológica. “Os professores são os melhores observadores; para que isto aconteça é necessário que os professores interpretem a sua profissão de uma forma abrangente (...) compreendendo que a sua função é única e que o seu papel insubstituível.”(Vittorino  Andreoli, 2003, p.224-225). Na opinião deste autor a intervenção psicológica não deveria recair nas crianças, mas antes nos professores, e responsáveis pelos ATL, orientando-os no sentido que leva à confrontação dos problemas das crianças, no seio do grupo e, responsabilizando-os  pelo alertar das famílias  para os desajustes demonstrados, pelas crianças  no contextos escolar  e, de ATL. Existe de forma generalizada em todos os contextos  do quotidiano,  uma noção de saúde infantil deficiente, promotora de muitas causas da depressão infantil e juvenil, atendendo ao facto de que o bem-estar geral não especifica em si as devidas situações, principalmente as do foro emocional, relacionadas  com o efeito causal.
Uma criança que sofre de uma doença crónica pode em minha opinião ser feliz, enquanto muitas crianças sem doença diagnosticada  e, aparentemente saudáveis podem ser extremamente infelizes no seu dia-a-dia.
O consumo é para muitas uma forma de afirmação da sua vontade, contrariada  em tantos aspectos, que acaba por  promover estes pequenos actos de irreverência, como manifestação de descontentamento e, de tentativa de afirmação ou,  que como o Diogo, apenas  interiorizam, construindo o seu próprio quadro “salutogénico” (Antonovsky, 1987-1993),  muitas vezes em prejuízo da sua saúde emocional.

Maria Isabel Almeida, 2009 - Universidade Aberta, (Trabalho: "A Criança na Sociedade Contemporânea").





Sem comentários: