Quotidiano infantil na sociedade contemporânea.
Breve ensaio.
Introdução
O propósito deste texto, versa uma observação
breve sobre os direitos das crianças aos tempos livres,
jogos/brincadeiras, à saúde e bem-estar e, ao papel da família na educação para
o consumo. Leitura relevante para todos os actores e agentes educativos, mas
também para o público em geral, que pretenda adquirir conhecimentos nesta
matéria.
Contextualização
Propósito
Breve
ensaio sobre o quotidiano de uma criança de 9 anos, que frequenta o 4º ano, do
1º ciclo do ensino básico. Ao acompanhar por algum tempo o “Diogo”
no seu quotidiano, pretende-se identificar e analisar quanto ao modo de
ocupação dos seus tempos quotidianos, em especial dos seus tempos livres;
conferir o cumprimento do seu direito à saúde; e tentar reconhecer
onde e, como o papel da família, interferem na sua relação com a
sociedade de consumo.
O
que vai por aqui?
Aqui, vai o quotidiano do Diogo!
Acorda bem cedo, não porque a escola fique longe, pois
basta-lhe atravessar a rua; já os pais trabalham fora do concelho e, têm de
deixar o filho na escola muito antes do que seria necessário. Mas o
Diogo não reclama, “rabuja” e, toca a andar! Há que esclarecer: o Diogo não
gosta da escola. Nunca gostou. Mas aceita o sacrifício para fazer os pais
felizes. Afinal, do que ele gosta mesmo é da hora de recreio,....não se cansa
de brincar! Poderia noutras circunstâncias, evidenciar um estado de perfeita
saúde, boa integração e, socialização se contudo na hora de ir para a escola,
ou nos momentos em que tem de fazer os “trabalhos de casa”, o Diogo não se tornasse
num menino triste, de ar cansado, apático e, desmotivado com tudo.
Após as actividades curriculares o Diogo permanece na
escola e, frequenta as actividades do ATL. Tem estudo, informática, inglês,
artes marciais, ginástica, hip-hop e as “conversas” com a psicóloga.
Quando acabam as actividades por volta das 17.30
horas, ainda terá de permanecer na escola até perto das 19 horas, quando a mãe
o vai buscar, depois do trabalho.
Esses momentos sem actividades ocupa-os a “brincar”.
Pena é que os seus colegas vão saindo, uns após os outros e, já poucos ficam
até tão tarde como ele! Mas ainda assim, são momentos muito divertidos.
As actividades semanais do Diogo não terminam aqui, ao
sábado tem natação de manhã (porque os pais querem que ele se desenvolva fisicamente,
visto ser uma criança franzina), e à tarde vai à catequese.
Ao domingo fica por casa, vê televisão, vai às compras
com os pais e, vai um pouco ao computador mas só depois de fazer os trabalhos
de casa (TPC’s). Sim, porque “amanhã” é de novo segunda-feira...
3. Argumentação
O
estilo de vida do Diogo e, da sua família denota a tendência já antes referida
por Neto (2001), “alterações na estrutura familiar e, laboral das sociedades
industrializadas ou pós-industrializadas”; também na opinião do
autor “uma das vertentes que mais se prende com a vida quotidiana das
crianças é a que respeita aos tempos livres”.
A
questão é que neste caso, como no da maioria das crianças, os tempos livres
focalizam-se na reprodução de actividades pro-curriculares, versando
temas e métodos idênticos aos do ensino curricular. Na verdade o que se propõe
actualmente nas actividades de ATL é pura e simplesmente, a ocupação exaustiva
das crianças, com vista ao valorizar das instituições, pelos pais, enfatizando
a quantidade de actividades disponíveis, que possam parecer úteis para o futuro
dos seus filhos, ao invés de se procurarem em proteger/satisfazer as crianças,
e atribuir-lhes o direito, já consagrado, à brincadeira e aos tempos livres. Os
pais por falta de interesse, desconhecimento ou simplesmente
comodismo, cedem à sedução das múltiplas actividades, pensando nelas como um
substituto da família, que a sociedade actual resgatou às crianças, em nome
duma produtividade maior e, duma competitividade global
que se traduz, regra geral, numa maior qualidade de vida
(estabilidade financeira).
Mas
que tipo de “qualidade” de vida é esta, que toma como reféns as crianças? O que
faz com que muitas destas crianças, desprezem a escola, em vez de a
desejarem? Porquê a extensão desta, nas ATL?
E,
se as actividades fossem realmente de brincadeira, poderia a escola ser
favorecida, na sua apreciação pelas crianças?
As
famílias precisam de facto de alternativas adequadas e, adaptadas para as suas
crianças. “ Os condicionalismos sociais, provocam um acentuado vazio do
tempo familiar”, cujo quadro de constrangimentos recai sobre todo o
percurso de vida das crianças. O Diogo sente-se revoltado porque não gosta do
que faz todos os dias. Frequenta há muito apoio psicológico, porque se sente
desmotivado, triste e possui um cepticismo, que não é comum em crianças da
mesma faixa etária. Nunca acreditou no Pai Natal!
Porque
sempre que lhe pedia “coisas” nunca lhas deu. E o que pedia o Diogo?!...que não
fosse para a escola,... Queria ficar em casa a brincar,... queria brinquedos
que nunca chegaram a vir,....não queria falar com a psicóloga,... Mas teve de
aceitar a realidade, (contudo confidenciou-me que lhe mentia,
só falava e respondia as “coisas” que ele já sabe que ela gosta de ouvir!!!)
A
“colonização do tempo” de (Giddens, 1994) é a do Diogo; é visível e, provavelmente
preocupante ao ponto de pôr a sua saúde em causa. Mas o Diogo não é uma criança
feliz, logo não pode ser saudável. Os dados sobre saúde infantil em Portugal,
são grandemente baseados na estrutura física, funcionamento orgânico e, em
problemas motricionais; faz-se também referência às deficiências ligeiras,
graves e muito graves, a vários níveis, mas em nenhum ponto, se observa a
felicidade das crianças, como factor essencial e, de interesse e, influência
directa na saúde emocional e, psicológica destas. O Diogo não tem deficiências,
tem desejos e sonhos tão simples como por exemplo, jogar à bola, - “nem me
importava tanto de ir à escola, se pudesse jogar num clube ; gostei
de aprender a nadar, mas agora que já sei, não gosto de lá andar” –
(palavras do Diogo) - como estes muitos outros comentários, o Diogo
vai desabafando no dia-a-dia, na esperança ínfima de obter o que deseja. De
tudo o que mais gosta é de ver televisão, ah, sim também de ir ao
computador jogar um bocadinho, - “mas é sempre tão pouco”!
Os
pais levam-no às compras, por vezes o Diogo pede um “kinder”, mas nem gosta de
chocolate, é só pelo brinquedo que vem no ovo. A educação do Diogo para o
consumo foi sempre muito regrada e, feita numa interacção directa com os pais,
no modo como servem de modelo e, na compreensão desde cedo, do valor do
dinheiro, atribuindo ao Diogo, por exemplo, a responsabilidade de retirar da
sua mesada o dinheiro necessário, para pagar os óculos do colega, que partiu
sem querer, numa das brincadeiras de grupo, no tempo de recreio.
Esta aprendizagem directa e, contínua é-lhe familiar e fácil de perceber.
Aprende a fazer, fazendo com a família no quotidiano, sem pressões ou
imposições, apenas observando e, participando com responsabilidade.
Corroborando a
teoria de Piaget, O Diogo desenvolveu, enquanto consumidor, uma socialização
por etapas do desenvolvimento cognitivo. Uma interacção aberta entre os pais e
a criança, teve muito provavelmente muita importância na primeira infância do
Diogo, que pode complementar agora, observando os comportamentos habituais
de consumo, dos pais.
Considerações
finais. Especulações e alternativas.
A
brincadeira é um acto espontâneo ao ser humano, especialmente na infância, fase
em que é indispensável ao desenvolvimento equilibrado das crianças. Mas para brincarem
as crianças precisam de Tempo Livre, sem compromissos regrados e, enquadrados
ou subjugados a um tema ou finalidade pré-definida e, padronizada.
Tempo
Livre é um direito institucionalmente reconhecido e, explícito no art.31 da
Convenção dos Direitos das crianças: é um tempo disponível à criação, à
brincadeira/jogo livre entre pares ou, puramente de ócio, como descansar, ver
um filme de que se gosta, ler um livro ou, apenas não fazer nada. Contudo no caso
do Diogo, assim como muitos outras crianças, este direito está-lhes vedado,
pela necessidade globalizante de capacitar os indivíduos para
enfrentarem o futuro, “armadilhados” contra o “risco” e a “incerteza”, que Anthony
Giddens (1994), classificou como marcos característicos da sociedade
contemporânea e, para os quais há que estar preparado.
Mas
algo se passa de muito complexo, pois não conseguimos colmatar um problema sem
criar outro ainda mais grave, podemos pôr várias questões: onde fica
o direito à escolha livre da criança? E o seu direito à saúde emocional, e por
consequência à saúde física e psicológica?
Não
é já atribuída à criança um tempo de trabalho, suficiente, comtemplando as horas
de actividades de aprendizagem? (Perrenoud, 1995).
O
Diogo tem para além do seu “trabalho” principal, outras actividades de
“part-time”, igualmente comprimidas no tempo, regradas nos
comportamentos e atitudes, geradoras de compromisso e, promotoras de
mal-estar permanente no seu quotidiano: a natação e a catequese
(este é um aspecto que também nos poderia levar a questões, como
endoutrinação ou coacção religiosa das crianças, mas que por agora
fica apenas como um aspecto para reflectir).
O
direito à escolha deveria favorecer e criar obrigatoriedade às
instituições, em alargar o leque de ofertas, a actividades sem
ligação a conteúdos curriculares. O porquê de nas ATL não existir actividades
como bordados, skate ou grafiti?
Poderemos
logo à partida chegar à resposta: por falta de profissionais com formação
específica, espaços adequados, materiais necessários às actividades
e.....entendimento humano, abertura de mentalidade, para que pais e, educadores
aceitem uma actividade sem preconceitos discriminatórios e, inibidores da
liberdade de escolha das crianças.
Sendo
a família a primeira e principal responsável pela educação das crianças, não deveriam
elas adoptar uma consciencialização responsável, demonstrativa da sua própria
autonomia e, poder de decisão avaliando e equilibrando no quotidiano da família
e das crianças, os diversos “Tempos” atribuídos aos vários contextos de vida,
dos seus filhos? Não serão também as empresas responsáveis, por uma
contribuição social numa atitude cívica, de interajuda com os pais,
no encontrar de soluções equilibradas? Penso que começar por aqui, é
já uma decisão de poder dos pais no Direito à
Protecção, Provisão e Participação dos seus filhos, na
sociedade contemporânea.
4. Conclusões.
O
Diogo passa mais tempo na escola do que com os pais, de certa forma, na
sociedade actual invertem-se os papéis, dos interventores
maioritários na educação das crianças, até agora considerados pela maioria das
teorias. Mas não devemos esquecer que, (e citando Rousseau), “a educação
deve centrar-se na criança e nos seus interesses e, não no
adulto e no mundo adulto”- é então mais provavelmente, na escola
que as eventuais dificuldades se poderão evidenciar em cada criança:
perturbações da aprendizagem, da fala, da socialização, perturbações de
audição, da visão, ou de ordem psicológica. “Os professores são os melhores
observadores; para que isto aconteça é necessário que os professores
interpretem a sua profissão de uma forma abrangente (...) compreendendo que a
sua função é única e que o seu papel insubstituível.”(Vittorino Andreoli, 2003, p.224-225). Na
opinião deste autor a intervenção psicológica não deveria recair nas crianças,
mas antes nos professores, e responsáveis pelos ATL, orientando-os no sentido
que leva à confrontação dos problemas das crianças, no seio do grupo e,
responsabilizando-os pelo alertar das famílias para os
desajustes demonstrados, pelas crianças no contextos escolar e,
de ATL. Existe de forma generalizada em todos os contextos do
quotidiano, uma noção de saúde infantil deficiente, promotora de
muitas causas da depressão infantil e juvenil, atendendo ao facto de que o
bem-estar geral não especifica em si as devidas situações, principalmente as do
foro emocional, relacionadas com o efeito causal.
Uma
criança que sofre de uma doença crónica pode em minha opinião ser feliz,
enquanto muitas crianças sem doença diagnosticada e, aparentemente
saudáveis podem ser extremamente infelizes no seu dia-a-dia.
O
consumo é para muitas uma forma de afirmação da sua vontade, contrariada em
tantos aspectos, que acaba por promover estes pequenos actos de
irreverência, como manifestação de descontentamento e, de tentativa de
afirmação ou, que como o Diogo, apenas interiorizam,
construindo o seu próprio quadro “salutogénico” (Antonovsky, 1987-1993), muitas
vezes em prejuízo da sua saúde emocional.
Maria
Isabel Almeida, 2009 - Universidade Aberta, (Trabalho: "A Criança na
Sociedade Contemporânea").
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